quarta-feira, março 02, 2005

desfazendo-se dos fones de ouvido ao mesmo tempo em que se enfiava num sorriso constrangido com um pedido de desculpas pela distração, eulália pôde afinal entender o que a moça do guichê exigia com tanta impaciência.
- a identificação, querida. esse tipo de cheque você só desconta com um documento de identificação.
"como se a princesinha achasse", eulália antevia o que mais iria na reclamação cheia de abuso da moça do guichê, "que saber a direção em que a fila anda é tudo o que é preciso saber sobre bancos pra se sentir no direito de não dar ouvidos a mais nada. pois isso aqui é um lugar pra gente séria, querida. e com pres-sa."
eulália pretendia ter aquele dinheiro na mão até as 11, de modo que pudesse chegar em casa antes do meio-dia e encontrar seu irmão ainda de saída pro trabalho. pagaria a ele enfim a última prestação da dolorosa dívida dos livros pro curso, almoçaria o que 10 minutos lhe permitissem almoçar, apanharia com ele mesmo uma carona até o obscuro laboratório de fotografia onde deveria encontrar do tal filme especial e à uma estaria finalmente no apartamento de eric como combinado. ou mesmo antes - na companhia de eric, tanto melhor. dali então iriam juntos rumo à praia, registrar a coleta de amostras de tecido da baleia morta trazida ainda viva pela maré cheia aquela madrugada. juntos, eulália e eric, flutuando, fotografando num idílio fantástico, perdidos e corretos numa troca de sorrisos profissionais feitos docemente cúmplices, um gigante de 10 metros caído aberto como uma sardinha aberta, suas vísceras se amontoando fedidas na areia. a baleia morta, enquanto eric dizia "a baleia morta" ao telefone, soava como tantas outras visões de apelo covarde ao coração de eulália - a queda de um cruel ditador, um filho que desse um meigo recital no auditório da escola. e eulália empertigava o espírito. para marchar na rua, para aplaudir calorosamente o seu pequeno garoto pianista.
olhou outra vez para a moça do guichê e em seu rosto cansado de clientes distraídos percebeu, não sem certa compaixão, a tristeza de alguém para quem a baleia morta na praia talvez não passasse de um monte grande demais, absurdo até mas desinteressante, de carne podre. surpresa consigo por se perceber crendo no óbvio - que, estudando ali os rostos atrás dos demais balcões, fosse encontrar humores efetivamente treinados, oprimidos pela rotina, desapaixonados e tão dispostos a cansar-se -, eulália esticou-se intrigada para ver o moço do guichê ao lado; ele de sua parte lhe pareceu menos orgulhoso pela intolerância de que devia armar-se e mais indefeso contra o seu poder. outra vítima, eulália pensou horrorizada, de cuja índole se apropriara a vulgar praticidade do lugar. e eulália rendeu-se então à piedade, desse e da moça à sua frente, e do outro moço no guichê do outro lado com sua crise repentina de tosse e quis ser uma baleia morta, aberta, que pulasse fora da fila e dançasse, promovendo um espetáculo, fazendo truques encantadores com as tripas, comandando um circo com banda, malabaristas e corda-bamba para a gente séria e com pressa ali reunida.
mas enquanto a moça do guichê fazia novamente sinal, dessa vez com o dinheiro novo e limpo esticado na mão para entregá-lo, eulália foi aos poucos sendo resgatada do delírio pela certeza de que seria não mais que um estorvo como baleia, um ônus de muitos quilos ao já previsto fardo diário do trabalho no banco, uma tentativa importuna de alegria. sabia na verdade que, não fosse por eric, nem a maior baleia do mundo com as entranhas mais fedidas, os pôneis mais fofinhos trotando em carrossel ao redor - nem a tarefa mais árdua como fotografar a maior baleia do mundo com as entranhas mais fedidas pareceria aquele monte venturoso, de cujo topo se divisa de olhos fechados a felicidade dentro de si.

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